“Batem à Porta” – Um Labirinto Filosófico sob Tensão
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Dirigido por M. Night Shyamalan e adaptado do livro O Chalé no Fim do Mundo de Paul Tremblay, “Batem à Porta” (2023) surge como um dos filmes mais assistidos da Netflix no Brasil, transcendendo o thriller psicológico para mergulhar em abismos éticos e existenciais. A narrativa minimalista acompanha Eric, Andrew e sua filha Wen — um casal gay e sua filha adotiva — em férias numa cabana isolada, cuja paz é brutalmente interrompida por quatro estranhos liderados pelo enigmático Leonard. A exigência dos invasores é aterradora: sacrificar um membro da família para evitar o apocalipse.
No cerne da trama, Shyamalan amplifica o clássico “Problema do Bonde”, transferindo-o do campo abstrato para o núcleo íntimo da família. A questão deixa de ser sobre salvar vidas anônimas para tornar-se um dilema visceral: como aplicar a moralidade utilitária — que privilegia o coletivo — quando as vítimas têm rosto, história e laços de amor? Cada recusa da família em cumprir a exigência desencadeia catástrofes globais (terremotos, pandemias), vistas em noticiários dentro da narrativa. Essa dinâmica opera como metáfora contundente sobre como escolhas individuais reverberam no destino coletivo, ecoando crises reais como a negligência durante a pandemia.
Paralelamente, o filme tece um embate filosófico entre fé e razão. Os invasores, especialmente Leonard (Dave Bautista em atuação paradoxalmente poderosa e vulnerável), agem movidos por convicções apocalípticas, mas sua dor ao cometer violências questiona se fins transcendentes justificam meios cruéis. Andrew, cético e marcado por traumas de homofobia, lê a invasão como ódio disfarçado — sua resistência simboliza a desconfiança de minorias contra narrativas dominantes. A genialidade do roteiro está na ambiguidade sustentada: jamais se confirma se as pragas são divinas ou coincidências, forçando o espectador a confrontar sua própria sede de certezas em um mundo pós-moderno.
A escolha por protagonistas gays adiciona camadas críticas profundas. Por que este casal — historicamente oprimido — deveria carregar o fardo de salvar um mundo que os rejeita? A exigência dos invasores reflete, alegoricamente, discussões sobre justiça social e o “tokenismo”, que cobram de minorias a redenção de sistemas que as violentam. Os flashbacks mostram Eric e Andrew resistindo à homofobia, e sua união sob ameaça torna-se um ato político de existência.
Shyamalan ressignifica o apocalipse ao confiná-lo no microcosmo do chalé. As tragédias globais são mediadas por telas de TV ou janelas, espelhando nossa experiência contemporânea de catástrofes: distantes, mas invasivas. A cabana funciona como metáfora do lockdown pandêmico, onde decisões individuais (como a vacinação) tinham peso coletivo. O filme pergunta: como agir quando o inimigo é invisível e a salvação exige um salto de fé?
Tecnicamente, o diretor emprega ângulos inclinados e closes claustrofóbicos para transmitir instabilidade psicológica, enquanto Bautista personifica o conflito entre dever e humanidade — sua dor ao cometer violências critica discursos de “salvação” que legitimam brutalidade. Apesar de flashbacks redundantes minarem parte da ambiguidade (vício conhecido de Shyamalan), as performances e a direção tensa sustentam o impacto.
“Batem à Porta” é, no fundo, um tratado sobre empatia em tempos de crise. Ao explorar como traumas coletivos (opressão, pandemia) nos tornam céticos até de narrativas que exigem solidariedade, o filme espelha nossa era de polarização, onde a verdade é refém da desconfiança. Sua força está em não resolver dilemas, deixando o espectador à deriva de suas próprias certezas — e lembrando que, às vezes, abrir a porta ao desconhecido é o maior ato de coragem. Com relevância filosófica e urgência narrativa, justifica seu lugar entre os mais vistos da Netflix.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Assista ao trailer de “Batem à Porta”: