Apocalipse nos Trópicos – O Golpe como Ato de Fé

Apocalipse nos Trópicos – foto: Reprodução

Petra Costa, a cineasta que capturou o colapso democrático brasileiro no documentário indicado ao Oscar Democracia em Vertigem (2020), volta com Apocalipse nos Trópicos (2025) para dissecar o fenômeno mais assustador da política contemporânea: a fusão entre fundamentalismo religioso e projeto de poder. Com acesso inédito a figuras como Lula, Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia, o filme expõe não apenas os mecanismos de um golpe, mas sua sacralização — um processo onde a violência política se veste de liturgia e a fé é instrumentalizada como arma de dominação.

O filme surge no momento exato, como um relâmpago que ilumina a escuridão do pós-2022. Petra Costa não se limita a registrar; ela decifra. Suas câmeras capturam de perto a coreografia mística do 8 de janeiro de 2023, quando golpistas invadiram o Congresso carregando crucifixos como escudos e engolindo cartões de memória como se fossem hóstias — um ritual de obscurantismo que produziu imagens, mais tarde recuperadas de dispositivos apreendidos pela Polícia Federal (incluindo os do delator Mauro Cid), revelando o cerne do projeto bolsonarista: uma teocracia miliciana, onde o Estado laico é sitiado por dogmas.

Malafaia emerge como o grande estrategista dessa empreitada, um general que se diz de Deus, enquanto desliza viciosamente pelos bastidores, usando como arma poder econômico e político arrancado a custa de vender a um povo simplório um produto que não tem condições de entregar: a graça divina.

O documentário detalha como ele transformou o púlpito em um centro de chantagem política, ameaçando dissidentes com a perda do apoio evangélico — 30% do eleitorado. Sua “teologia do domínio”, importada dos EUA durante a Guerra Fria, prega o controle das “sete montanhas da sociedade” (governo, mídia, educação), e o filme mostra como essa doutrina foi aplicada no Brasil: da defesa do genocídio pandêmico (“Deus acima da ciência”) ao financiamento de ataques sistemáticos às instituições democráticas, especialmente o STF.

Bolsonaro, por sua vez, não é retratado como um líder caótico, mas como o operador central de uma organização criminosa. Costa apresenta provas irrefutáveis: a minuta do golpe (um decreto para fechar o STF e prender ministros), os planos de assassinato contra Lula, Alckmin e Moraes, e a grotesca cerimônia da “unção dos três poderes”, onde o laicismo foi sistematicamente aviltado diante do prédio do Congresso. O ex-presidente é desmascarado não como um messias incompetente, mas como um calculista que usou o misticismo para mobilizar as massas.

A genialidade do filme está em conectar os pontos entre política e fundamentalismo. Costa também demonstra como o mercado desregulado e o púlpito armado se alimentam mutuamente: Bolsonaro usou lives para disseminar desinformação, enquanto Malafaia mobilizou redes de fake news contra “inimigos da fé”. Hoje réus ao lado do próprio Bolsonaro, em um processo que esperamos ansiosos para ver concluído, figuras como Braga Netto e Alexandre Ramagem aparecem como peças desse jogo, homens que agiram como “kids pretos” de um Estado sequestrado por uma quadrilha que tentava misturar teologia e autoritarismo.

Esteticamente, o filme é uma obra-prima do horror político. A diretora funde pinturas de Hieronymus Bosch com cenas do 8 de janeiro, comparando o bolsonarismo a uma inquisição moderna. Seus capítulos, nomeados com versículos bíblicos (“O Cavaleiro da Morte”), ironizam a instrumentalização do terror sagrado. A narração serena da diretora contrasta com os gritos histéricos de Malafaia, como se a razão insistisse em sobreviver em meio ao delírio.

Apocalipse nos Trópicos transcende o Brasil. É um alerta global sobre o avanço da “teologia do domínio” — um projeto transnacional que já contaminou a Argentina de Milei e os EUA de Trump. O filme conclui com uma sentença implacável: onde o fundamentalismo controla o Estado, a democracia definha. E as provas estão aí, nos escombros de Brasília, no Capitólio de 2021, e nos países que ainda não perceberam o vírus que os cerca.

Petra Costa não faz cinema. Ela escava covas para regimes autoritários e nelas planta sementes de resistência. Apocalipse nos Trópicos transcende o registro de um fenômeno brasileiro: é um estudo de caso global sobre como o fundamentalismo religioso corrói democracias.

Ao documentar a cumplicidade entre Bolsonaro e líderes evangélicos, o documentário prova que a teocracia não é profecia, mas projeto em execução. Ainda que falhe em mergulhar mais fundo nas raízes sociais da lavagem cerebral travestida de religião, o filme triunfa como arquivo histórico da encruzilhada autoritária brasileira, ecoando um aviso universal: onde fé e Estado se misturam, a democracia definha.

Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Assista ao trailer de “Apocalipse Nos Trópicos”:

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