A Longa Marcha: O Espelho Sombrio de um Regime Fascista
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Em um momento político em que os Estados Unidos estão sob o comando de um governo de fascistas, a adaptação cinematográfica de “A Longa Marcha: Caminhe ou Morra”, em cartaz nos cinemas, parece oferecer um espelho perturbador do nosso tempo. Dirigido por Francis Lawrence, o filme transpõe para as telas uma distopia angustiante que, escrita originalmente por Stephen King nos anos 60, ressoa com ainda mais força no contexto atual.
A premissa é tão simples quanto cruel: em uma América sob um regime totalitário, cinquenta adolescentes são forçados a participar de uma competição mortal e televisionada. Eles devem caminhar sem parar, mantendo uma velocidade mínima; sem desacelerar demais ou parar. A cada descumprimento das regras, o participante recebe uma advertência e quem soma três advertências está sujeito a uma execução sumária.
A prova só termina quando restar um único sobrevivente, premiado com riquezas e a realização de um desejo. O filme acompanha principalmente Raymond “Ray” Garraty e o grupo de jovens que, em meio a essa jornada desumana, formam laços inesperados de amizade e solidariedade .
A grande força do filme está em construir uma tensão quase insustentável a partir de uma ação aparentemente monótona: caminhar. Francis Lawrence, veterano da franquia “Jogos Vorazes” – que, não por acaso, bebeu da fonte desta obra de King – opta por uma abordagem claustrofóbica. A câmera permanece colada aos personagens, focando em sua exaustão física e desgaste psicológico, em um gradativo esfacelamento que é tanto corporal quanto emocional . A tensão não vem de reviravoltas complexas, mas da expectativa constante do próximo tiro, do rastro de corpos que se acumula e da luta interna de cada um para não desistir diante de uma dor que se torna cada vez mais insuportável. A violência é gráfica e abrupta, servindo não como espetáculo vazio, mas como um lembrete chocante da brutalidade de um sistema que não perdoa.
“A Longa Marcha” vai muito além de um simples thriller de sobrevivência. O filme captura com precisão a crítica contundente da obra original, funcionando como uma alegoria poderosa sobre a ascensão de governos fascistas. O regime retratado na trama aproveita-se de um cenário de crise econômica e instabilidade social para implementar suas soluções sádicas, usando os jovens competidores como um espetáculo para distrair e “inspirar” a população a uma produtividade cega, em uma clara referência a propagandas militaristas.
A figura do Major, interpretado com uma frieza sádica por Mark Hamill, personifica o autoritarismo opressor. O evento em si é a materialização de um sistema que banaliza a vida humana, transformando o sofrimento em entretenimento para consumo das massas – uma analogia tão pertinente aos reality shows atuais quanto às estruturas de poder totalitárias. A história mostra como regimes autoritários podem seduzir e depois descartar seus cidadãos, prometendo glória em troca de obediência e sacrifício.
Em um filme com uma narrativa tão crua, o coração da trama bate na química entre Cooper Hoffman, como Ray Garraty, e David Jonsson, como Peter McVries. Suas atuações são o alicerce emocional que prende o espectador. Eles conseguem transmitir, com nuances e olhares, a complexidade de uma amizade forjada na adversidade mais extrema, tornando-se o farol de um mundo que já perdeu a humanidade. O elenco de apoio é sólido, criando um microcosmo vivo de personalidades que, mesmo com desenvolvimento limitado, ajudam a pintar o retrato de um grupo unido pelo destino trágico.
Francis Lawrence entrega um filme que é tanto um thriller de sobrevivência eficiente quanto um comentário social urgente. A adaptação faz mudanças significativas em relação ao livro, notadamente em seu final, que ganha uma carga de sacrifício e vingança que não estava presente na obra original – e, surpreendentemente, contou com o aval e a admiração do próprio Stephen King.
Embora possa se tornar um pouco repetitivo em seu meio e priorize o desenvolvimento de seus dois protagonistas em detrimento de outros personagens, esses são pecados menores diante do impacto geral da obra. Em um momento em que discursos autoritários e a espetacularização da política ganham força globalmente, “A Longa Marcha: Caminhe ou Morra” se ergue não apenas como um grande filme baseado na obra genial de Stephen King, mas como um aviso sombrio e necessário. É uma jornada exaustiva, brutal e, acima de tudo, inesquecível, que ecoa muito depois que os créditos finais sobem.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade