ReNASCIMENTO: O Tributo Afetuoso (e Desigual) que Reinventa Milton para Novos Ouvidos
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O álbum ReNASCIMENTO, desdobramento sonoro do documentário Milton Bituca Nascimento, chega como um projeto ambicioso: ressignificar o cânone de um dos maiores gênios da música brasileira através de vozes da nova geração. Sob direção de Victor Pozas, as 12 regravações apresentam um paradoxo fascinante: quanto menos se conhece a obra original de Milton e suas interpretações históricas, mais encantador e coeso o disco soa. Para ouvintes familiarizados com as versões icônicas de Elis Regina, Nana Caymmi ou o próprio Bituca, porém, o álbum oscila entre lampejos de inspiração e escolhas questionáveis.
Os Acertos: Onde o Frescor Supera o Peso da Herança
Os momentos mais bem-sucedidos são aqueles em que os artistas dialogam com Milton sem tentar emulá-lo, encontrando uma linguagem própria:
- OutroEu em “Clube da Esquina nº 2”: O duo fluminense transforma a complexidade rítmica original em uma serenata contemporânea, minimalista e eletrônica. A voz suave de Guto Oliveira desliza sobre arranjos atmosféricos, criando uma nova paisagem sonora que honra a melodia sem repeti-la .
- Os Garotin em “Bola de Meia, Bola de Gude”: A escolha é quase meta — a canção que batiza o trio (“Garotin” vem da letra) ganha um lirismo despretensioso que ecoa o conselho de Cupertino: “tornar-se criança como Milton”. A produção acústica, com violões entrelaçados e percussão sutil, captura a essência lúdica da obra .
- Maro em “Cais”: A cantora portuguesa oferece a interpretação mais comovente do disco. Seu frasado introspectivo e a entrega vocal contida evitam comparações com a dramaticidade de Milton, transformando a canção em um suspiro melancólico e pessoal .
- Tim Bernardes, Zé Ibarra e Dora Morelenbaum em “Ânima” (com Milton): A faixa-homenagem ao próprio Bituca é o coração do álbum. A conjugação de gerações — com Milton ainda presente — e os arranjos orquestrais da Tallin Studio Orchestra criam um momento de transcendência, onde passado e presente se fundem .
As Armadilhas: Quando a Sombra das Versões Clássicas Ofusca
Algumas faixas sofrem do mesmo mal: escalas vocais ou emocionais aquém do repertório exigente:
- Sandy em “Travessia”: Apesar do belo trabalho do guitarrista Mateus Asato, Sandy entrega uma performance técnica mas desprovida de jornada emocional. Falta o peso existencial da “voz nas estradas” — especialmente quando comparada à versão sacramental de Elis Regina ou à entrega visceral do próprio Milton. Como observado por críticos, sua voz “soa sem bagagem” para a dor da travessia .
- Analu em “Canção do Sal”: A escolha foi arriscada — confrontar a leitura política e abrasadora de Elis Regina (1966). Analu reduz a canção a um lamento individual, perdendo a dimensão social do trabalho nas salinas. A produção de Fi Maróstica acentua essa fragilidade, com arranjos que soam genéricos .
- Clarissa em “A Festa”: A interpretação leve e descontraída, embora agradável, esvazia a ironia ácida da letra original sobre a frivolidade das elites. Sem a ambiguidade de Milton (que mesclava doçura e crítica), a faixa vira mero pop .
A Direção de Pozas: Uma Ponte Entre Eras
Victor Pozas orquestra o projeto com sabedoria curatorial. Ao evitar reproduções fiéis, ele permite que os artistas reinventem as canções dentro de seus universos — do suingue nordestino de Lucas Mamede em “Ponta de Areia/Tudo Que Você Podia Ser” à energia pop de Johnny Hooker e Kell Smith em “Paula e Bebeto” . A inclusão da Tallin Studio Orchestra em três faixas adiciona camadas dramáticas sem cair no excesso, especialmente em “Encontros e Despedidas” de Liniker, onde as cordas amplificam a intensidade da voz .
Conclusão: Um Disco-Porta de Entrada, Não um Destino
ReNASCIMENTO cumpre um papel essencial: apresentar Milton Nascimento a uma geração que talvez nunca o tenha ouvido. Como Pozas define, é o “eco de um legado” germinado por novos intérpretes . Para puristas, sofrerá comparações inevitáveis — e perderá em várias. Mas seu maior mérito está justamente na ausência de pretensão em substituir o original.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Ouça o álbum “ReNASCIMENTO” no Spotify:
ReNASCIMENTO está disponível em todas as plataformas digitais. O documentário “Milton Bituca Nascimento” segue em cartaz nos cinemas.