“Bono: Histórias de Surrender” — O Peso da Redenção nas Confissões de um Ícone
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Em Bono: Histórias de Surrender, o líder do U2 transforma o palco do Beacon Theatre (Nova York) em um confessionário laico, onde o público assume o papel tríplice de testemunha, analista e padre da vida de um homem que, desde 1979, vive sob o julgamento constante do mundo. Dirigido por Andrew Dominik (O Assassínio de Jesse James) e coproduzido por Brad Pitt, o documentário — baseado na autobiografia “Surrender: 40 Canções, Uma História” e no show solo homônimo — é um exercício radical de exposição emocional.
O Ritual da Confissão: Entre a Culpa e a Graça
Bono não apenas narra sua história; ele a encena com uma vulnerabilidade impressionante. Diante da plateia, episódios marcantes de sua vida são apresentados como momentos de epifania espiritual. Suas histórias oscilam entre o íntimo, o artístico (a pressão de sustentar o U2) e o messiânico (o ativismo global). A plateia, imersa na penumbra, responde com silêncios reverentes ou aplausos catárticos, reforçando a dinâmica de absolvição coletiva que Bono parece buscar. Sua dependência desse julgamento público é o motor do filme: “Preciso salvar meu casamento, o U2, o mundo… mas também quero ser salvo”, confessa.
Canções Despidas: A Essência Amplificada
O maior triunfo do documentário está nas releituras acústicas de clássicos do U2. “With or Without You”, “Where the Streets Have No Name” e outras surgem sem a grandiosidade dos estádios, reduzidas a arranjos de piano, violão e cordas. Essa nudez sonora revela o peso emocional das letras. Quando Bono canta em voz rouca, a ausência de efeitos expõe o real significado de cada um dos “hinos”. As canções não só sustentam as narrativas — incluindo reflexões sobre relações familiares — mas transcendem seu formato original, provando que a grandeza artística reside na simplicidade.
A Fotografia como Espelho da Alma
Dominik e a equipe optam por uma estética em preto e branco que dialoga com a tradição visual do rock — quase uma homenagem subliminar a Anton Corbijn, fotógrafo que revolucionou a imagem dos U2 nos anos 80 com as capas dos discos “The Joshua Tree” e “Achtung Baby” ao defender que “o preto e branco é a tradução da realidade”. Os closes no rosto enrugado de Bono, iluminados por holofotes que criam sombras dramáticas, ecoam a filosofia de Corbijn: imperfeições usadas para humanizar o ícone. A textura granular das imagens de arquivo contrasta com a fluidez digital dos shows atuais, simbolizando a colisão entre passado e presente.
O Preço da Entrega: Narcisismo ou Generosidade?
Há um risco inerente nesse projeto: a linha tênue entre autorreflexão e auto idolatria. Bono evita a armadilha focando sempre em muita autocrítica e cedendo espaço a suas dúvidas. Sua narrativa sobre a fé é apresentada como uma busca falível, não um sermão. A ausência dos outros membros do U2 reforça o caráter solitário da jornada, lembrando que a “surrender” (rendição) do título é, antes de tudo, uma entrega às próprias vulnerabilidades.
Veredito: Um Retrato Que Redefine a Autobiografia Musical
“Bono: Histórias de Surrender” não é um documentário sobre rock. É um estudo sobre o peso da fama e a sede de redenção de um artista que, aos 65 anos, encara o público como espelho de suas contradições. A opção imersiva (disponível no Apple Vision Pro, em 8K com áudio espacial) potencializa a intimidade, colocando o espectador no palco ao lado de Bono. Se em “The Joshua Tree” ele buscava a América como mito, aqui a busca é por sua própria humanidade — e a fotografia em preto e branco é a metáfora perfeita para essa jornada: a cor foi removida, mas a verdade permanece.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Assista ao trailer de “Bono: Histórias de Surrender”: