“Ainda Não é Amanhã” – O Grito Silenciado do Corpo Feminino
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Em “Ainda Não é Amanhã”, estreia da diretora Milena Times que chega nesta quinta-feira (5/6), acompanhamos Janaína – interpretada com intensidade comovente por Mayara Santos. Aos 18 anos, negra, bolsista de Direito numa universidade de Recife, ela carrega nas costas o sonho de ser a primeira geração universitária de sua família. Quando uma gravidez inesperada atravessa seu caminho, o filme nos arrasta para um dilema dilacerante: como decidir sobre o próprio futuro num país que criminaliza escolhas íntimas?
Mais que um drama individual, a narrativa expõe com crueza a violência estrutural contra mulheres pobres. A criminalização do aborto, sustentada por dogmas religiosos, revela-se aqui como mecanismo perverso de controle social. Janaína usava contraceptivos, fez “tudo certo”, mas tornou-se refém de uma legisglação arcaica que ignora a realidade das periferias. A ironia é amarga: enquanto estuda leis, descobre que seu corpo não tem amparo legal. O filme nos lembra, sem didatismos, que o aborto já é prática corriqueira no Brasil – mas mortalmente desigual. Ricas pagam por clínicas seguras; pobres sangram na clandestinidade.
Milena Times evita simplismos ao abordar religião. Não há julgamento no núcleo feminino que cerca Janaína (mãe e avó interpretadas com força por Clau Barros e Cláudia Conceição), mas sim no Estado laico que capitulou ao conservadorismo. A diretora crava: mulheres interrompem gestações independentemente da lei, e a criminalização só as empurra para a insegurança. A pergunta ecoa em cada plano: por que um útero alheio interessa mais a dogmas que à ciência?
A estética reforça o protesto. A câmera de Linga Acácio mantém Janaína sempre no centro, enquadrada como alvo de um cerco social. Planos longos transmitem claustrofobia, enquanto os silêncios de Mayara Santos – traduzidos em olhares perdidos e mãos trêmulas – falam mais que discursos. Times fez questão de uma equipe majoritariamente feminina (fotografia, som, arte), criando um ambiente que contrasta o acolhimento do set com a violência do mundo retratado. “Diretores homens não precisam provar seu valor a cada cena”, justifica a diretora.
Algumas vozes criticam a rigidez visual, sugerindo que enquadramentos repetitivos limitam o impacto emocional. A opção por não mostrar cenas explícitas de aborto preserva a dignidade da personagem, mas talvez omita parte de seu turbilhão interno. Ainda assim, o conjunto é potente.
“Ainda Não é Amanhã” transcende o cinema: é manifesto urgente pela descriminalização da vida feminina. Times desmonta a falácia de que “a vida começa na concepção” ao nos mostrar que ela já existe em Janaína – nos seus livros de Direito, na monitoria, nos olhos que brilham ao falar do futuro. Tudo ameaçado por leis que privilegiam células sobre projetos de existência.
Num Brasil onde projetos reacionários ameaçam direitos reprodutivos, o filme é soco no estômago da hipocrisia. Quantas Janaínas morrem enquanto moralismos se disfarçam de virtude? Não oferece respostas fáceis, mas nos obriga a encarar o abismo entre privilégios e realidade. Como resume Natasha Nery: “Poderia ter pressa em pautar a legalização, mas prefere mergulhar na complexidade humana. É sobre escolher quando – e se – o amanhã chega”.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Assista ao trailer de “Ainda Não é Amanhã”: