‘Homem com H’: A Cinebiografia de Ney Matogrosso Brilha na Netflix

Homem com H – foto: Reprodução

Homem com H, cinebiografia do ícone musical Ney Matogrosso, chegou à Netflix em 17 de junho após uma bem-sucedida passagem pelos cinemas, onde atraiu mais de 620 mil espectadores e arrancou aplausos em sessões coletivas . Dirigido por Esmir Filho, o filme mergulha na trajetória do artista, desde sua infância opressora no Mato Grosso do Sul, sob o jugo de um pai militar homofóbico (Rômulo Braga), até sua ascensão com os Secos & Molhados e a carreira solo, sem omitir seus relacionamentos intensos, como os com Cazuza (Jullio Reis) e Marco de Maria (Bruno Montaleone).

No centro dessa narrativa está Jesuíta Barbosa, cuja performance como Ney Matogrosso é o alicerce do filme. Barbosa emprega uma transformação física impressionante: perdeu peso, dominou trejeitos corporais e incorporou a presença de palco do cantor com ajuda de cinco profissionais, incluindo preparação de dança, canto e caracterização meticulosa (com próteses dentárias e perucas). Sua atuação é hipnótica em cenas-chave, como nos números musicais onde a energia performática de Ney explode em coreografias ousadas, ou nos momentos de vulnerabilidade, como o confronto com o pai ou o luto pelos amores perdidos para a AIDS.

No entanto, há um descompasso entre a persona retratada e o artista real. Enquanto Ney Matogrosso é conhecido por sua discrição fora dos palcos – um “bicho-homem arisco”, como descreve o blog do G1 –, Barbosa o interpreta com uma intensidade às vezes exacerbada. Seus gestos amplificados, olhares penetrantes e expressões corpóreas transbordam a tela, criando uma versão mais expansiva e menos contida do cantor. Essa escolha, embora eficaz para o drama cinematográfico, pode sugerir uma caricaturização sutil da figura complexa de Ney, cuja resistência silenciosa à ditadura e à homofobia é historicamente mais discreta que sua persona artística .

Esmir Filho equilibra linguagem autoral e apelo popular com maestria. Usa a fotografia e o simbolismo das imagens para contar muito bem sua história, com alguns detalhes que chamam atenção pela engenhosidade.

Ainda assim, o roteiro peca por ser demasiadamente fiel à perspectiva do biografado. Ney exigiu “nada de mentiras” e revisou 12 versões do roteiro , o que resultou em um retrato unidimensional, sem críticas à sua trajetória ou nuances além do que ele já revelou em entrevistas.

A exigência de veracidade de Ney é uma faca de dois gumes. Por um lado, garante autenticidade aos momentos mais cruciais: seu teste negativo para HIV diante do parceiro morrendo de AIDS, cena que fez o próprio cantor “desabar” , ou a correção histórica do romance com Cazuza, apagado na cinebiografia do roqueiro em 2004. Por outro, limita a ousadia do cinema em explorar contradições. O filme honra Ney como símbolo de resistência – sua luta contra a ditadura, a homofobia e as normas de gênero –, mas falha em questionar como essa mesma figura se manteve relevante em décadas de mudanças culturais .

O filme é um testemunho arrebatador da força de Ney Matogrosso, elevado pela atuação técnica de Jesuíta Barbosa – mesmo que, às vezes, ela se afaste bastante do homem quieto, tímido e educado que aparece assim que o artista genial põe os pés fora do palco.

Homem com H é um monumento cinematográfico de força e resistência, iluminado pela transformação hipnótica de Jesuíta Barbosa, mas que, ao se curvar às exigências de veracidade absoluta de seu biografado, acaba por erguer um altar onde deveria desvelar um homem: celebra com maestria o ícone transgressor do palco, mas deixa nas sombras o ‘bicho-homem arisco’ e as complexas contradições que fizeram de Ney Matogrosso muito mais que sua própria lenda.

Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Assista ao trailer de “Homem com H”:



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