Vitória: Memória, Resistência e o Eco de uma Nação nas Telas
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Dirigido por Andrucha Waddington, que herdou o projeto após a trágica morte de Breno Silveira durante as filmagens, Vitória (2025) mergulha na história real e extraordinária de Joana Zeferino da Paz. Esta idosa de 80 anos, entre 2003 e 2005, transformou a janela de seu apartamento em Copacabana numa trincheira silenciosa, filmando com uma câmera VHS a rotina sinistra de traficantes e policiais corruptos na Ladeira dos Tabajaras. Suas 22 fitas, testemunhos incriminadores, foram cruciais para a prisão de 30 criminosos, incluindo PMs, levando-a ao anonimato do programa de proteção a testemunhas, onde viveu até sua morte aos 97 anos em 2023. Inspirado no livro Dona Vitória Joana da Paz do jornalista Fábio Gusmão (interpretado por Alan Rocha), o filme tece essa epopeia solitária num thriller social urgente, entrelaçando drama íntimo e denúncia política com força visceral.
No centro dessa narrativa pulsa a atuação magistral de Fernanda Montenegro, aos 95 anos, no papel de Nina (pseudônimo dado a Joana na tela). Seu desempenho é um estudo sublime de nuances. Através de olhares penetrantes, pausas eloquentes e gestos mínimos, Montenegro constrói uma personagem complexa. As cenas em que Nina filma os criminosos, com mãos trêmulas mas uma determinação de ferro, são verdadeiras aulas de expressão não verbal. A atriz evita qualquer romantização, mostrando sem medo a solidão, o medo palpável e o cansaço físico da heroína, ao mesmo tempo que irradia a ferocidade teimosa de quem desafia o caos armada apenas com uma câmera.
Curiosamente, a própria Joana sonhava em ser interpretada por Montenegro após ver Central do Brasil, e este possível último papel da lenda do cinema prova, sem sombra de dúvida, por que ela é um ícone. No entanto, mesmo com o brilho inegável da protagonista, o filme enfrenta altos e baixos. O primeiro ato arrasta-se, e parte do elenco coadjuvante, como os vizinhos do condomínio, não consegue sustentar o peso dramático necessário. A direção de Waddington só encontra um ritmo mais seguro na segunda metade, impulsionada pelas aparições impactantes de Thawan Lucas, como um jovem vizinho, e Alan Rocha.
Vitória não escapa de dilemas éticos e estéticos significativos. A escolha mais polêmica foi escalar Fernanda Montenegro, atriz branca, para interpretar Joana, uma mulher negra na vida real – uma decisão criticada por apagar a dimensão racial intrínseca à violência urbana retratada. O filme inverte até a etnia do jornalista Fábio Gusmão (branco na realidade, interpretado pelo negro Alan Rocha como Flávio Godoy). Optando por um tom clássico e evitando experimentalismos, a narrativa constrói cenas de suspense policial eficazes, como as investidas ameaçadoras dos traficantes contra Nina, embora por vezes caiam na previsibilidade. A obra expõe de forma crua a banalização da violência, a conivência estatal e a corrupção policial que assolam o cenário urbano. Contudo, seu foco recalca firmemente sobre o indivíduo heróico, deixando um pouco nas sombras a crítica às estruturas sociais e políticas mais profundas que perpetuam o ciclo do crime.
A estreia de Vitória na Globoplay em 19 de junho de 2025 é carregada de simbolismo, coincidindo com o Dia do Cinema Brasileiro. Esta data celebra os 127 anos da primeira filmagem no país, realizada por Afonso Segreto ao registrar a Baía de Guanabara em 1898. O timing é perfeito e revelador. O filme chega num momento de renascimento do audiovisual nacional, impulsionado por investimentos robustos via FSA e Lei Paulo Gustavo (R$ 7,6 bilhões em 2023-2024), com um recorde histórico de 3.518 salas em operação e o anúncio da plataforma Tela Brasil. Há uma poderosa sinergia histórica: assim como Segreto documentou o Rio pioneiramente em 1898, Joana/Nina o fez em 2005 – ambos atos fundamentais de resistência através da imagem. Ao posicionar Vitória como “filme original” ao lado de sucessos como Ainda Estou Aqui (vencedor do Oscar 2025), a Globoplay demonstra como as plataformas de streaming podem, sim, ampliar o acesso e dar destaque a obras de profunda relevância cultural.
Embora oscile entre o cinema de arte mais contemplativo e as convenções do thriller, e suas escolhas de elenco gerem debates necessários, Vitória se afirma como um documento cultural pungente e necessário. Ele celebra, através da personagem de Nina vivida por Montenegro, a velhice como potência e resistência, um antídoto contra a invisibilidade social imposta aos idosos. A história real de Joana ecoa como um lembrete poderoso de que mudanças significativas podem nascer de gestos aparentemente pequenos, mas corajosos, do indivíduo frente ao sistema.
Ao estrear nesta data emblemática, o filme resgata o gesto pioneiro de Afonso Segreto, reafirmando que registrar a realidade, especialmente a mais dura e incômoda, permanece um ato político fundamental. Como declarou Fernanda Montenegro, “Nina é uma porta-voz do momento que vivemos: da miséria, dos que não têm para onde ir”. Nesta era de retomada do cinema brasileiro, Vitória transcende a obra cinematográfica; é um testemunho vibrante de que a luta por justiça, tal qual a arte, exige a coragem inquebrantável de enquadrar a realidade – mesmo quando tudo ao redor treme.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Assista ao trailer de “Vitória”: