Verdades Inconvenientes: A Série “Mentirosos” Expõe o Lado Sombrio do Privilégio
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A estreia de Mentirosos no Prime Video em 18 de junho de 2025 trouxe à tona uma das adaptações mais aguardadas do universo literário jovem. Baseada no best-seller de E. Lockhart, a série mergulha no universo opulento e corrompido dos Sinclair, uma família que personifica a aristocracia americana em decadência, dona de uma ilha privada onde verões idílicos escondem segredos devastadores. Como adaptação, a produção dirigida por Julie Plec e Carina Adly MacKenzie (The Vampire Diaries, Roswell) opta por um caminho menos poético e mais visceral que o livro, abraçando sem pudor as convenções do drama teen – e, nesse processo, encontra tanto força quanto contradição.
A narrativa acompanha Cadence (Emily Alyn Lind), uma herdeira de 17 anos que, após um acidente traumático, perde a memória do verão que mudou sua vida. Ao retornar a Beechwood Island dois anos depois, ela se vê imersa em um jogo de mentiras orchestrado por aqueles que mais ama: os primos Mirren (Esther McGregor) e Johnny (Joseph Zada), e Gat (Shubham Maheshwari), seu melhor amigo e primeiro amor. O grupo, autointitulado “Os Mentirosos”, agora evita falar do passado, forçando Cadence a reconstruir a verdade fragmentada entre lembranças dolorosas e alucinações perturbadoras .
O romance original, aclamado por sua prosa lírica e estrutura narrativa não linear, carregava uma carga psicológica densa, quase claustrofóbica. A série, em oito episódios, suaviza essa complexidade em favor de um ritmo televisivo mais palatável. As metáforas literárias dão lugar a diálogos diretos e conflitos amplificados, especialmente nas dinâmicas familiares. Enquanto o livro sugeria a homossexualidade de Johnny, a série a explicita em cenas de confronto emocional, assim como aprofunda as tensões raciais entre Gat (filho de imigrante indiano) e o patriarca Harris Sinclair (David Morse). Essas escolhas, embora tornem os temas mais acessíveis, perdem parte da sutileza que cativou os leitores.
A grande virada da adaptação, porém, está na humanização dos adultos. Penny (Caitlin FitzGerald), Carrie (Mamie Gummer) e Bess (Candice King), as tias de Cadence, transcendem caricaturas de riqueza ociosa. Seus vícios, traições e lutos – como a morte não resolvida de uma irmã mais nova – ganham destaque, criando um contraponto maduro ao drama adolescente. Carrie, em particular, brilha como uma figura tragicamente presa ao fantasma do filho.
Emily Alyn Lind entrega uma performance convincente como Cadence, equilibrando fragilidade e obsessão. Seu arco, no entanto, ilustra o maior desafio da série: fazer o público se importar com personagens intrinsecamente privilegiados. O livro sofria para justificar a empatia pela protagonista, e a série não foge dessa armadilha. Em cenas que expõem a alienação moral dos Sinclair – como um jantar onde discutem “pobres” com condescendência –, a crítica social roça o óbvio. Ainda assim, a direção compensa com flashbacks hábeis que mostram a ilha como um paraíso pervertido: palco de festas deslumbrantes, mas também de manipulação e culpa.
Visualmente, Mentirosos é um triunfo. A fotografia em HDR realça os azuis do oceano e os verdes da ilha, contrastando com a paleta sombria do presente pós-traumático. Essa dicotomia reforça o tema central: a ruptura entre a fantasia da riqueza e a realidade podre que a sustenta. O problema reside no ritmo. Os primeiros episódios arrastam-se em revelações mínimas, enquanto o clímax, concentrado no último episódio, parece apressado. O suspense psicológico, base do livro, dilui-se em subplots românticos e confrontos familiares que, embora bem atuados, nem sempre avançam o mistério principal.
Mentirosos não é fiel à letra do livro, mas captura seu espírito de forma peculiar. Ao rejeitar as pretensões literárias do original, Plec e MacKenzie optam por um melodrama teen luxuoso e catártico, onde segredos são mais escandalosos que profundos. O elenco jovem (especialmente Zada, carismático como Johnny) e as performances camp dos adultos salvam a trama de seu próprio didatismo. A série funciona melhor como um estudo de personagens que como thriller – um conto de verão sobre como mentiras unem mais que verdades, e como famílias perfeitas são as mais despedaçadas por dentro.
Para fãs do livro, a adaptação pode frustrar pela falta de ambição narrativa. Para novos espectadores, é um drama envolvente, ainda que convencional, sobre perda, privilégio e o preço da memória. E nesse equilíbrio entre o cult original e a novela de streaming, Mentirosos encontra sua verdade mais honesta: às vezes, mentir é a única forma de sobreviver.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Assista ao trailer de “Mentirosos”: