“No Céu da Pátria Nesse Instante”: Um Espelho Quebrado do Brasil à Beira do Abismo
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Chegando nesta quinta-feira (14/08) aos cinemas, o documentário “No Céu da Pátria Nesse Instante”, da cineasta Sandra Kogut, é mais uma peça fundamental para ajudar a compreender o Brasil contemporâneo em sua encruzilhada democrática.
Filmado no coração do turbilhão eleitoral de 2022, o filme de Sandra Kogut, é muito mais que um documento histórico. É uma radiografia urgente e sensível da psicose coletiva que tomou conta do Brasil, capturando não apenas os fatos, mas o clima visceral de um país rachado ao meio. Com acesso privilegiado a bastidores inéditos e um olhar atento para personagens anônimos, Kogut constrói um filme que é catarse e alerta, um espelho inquietante para um presente ainda em aberto.
A força do documentário reside na forma crua como registra o alívio frágil da vitória de Lula sobre Bolsonaro. Militantes abraçados, voluntários do TSE com lágrimas contidas, famílias celebrando diante das TVs como sobreviventes – Kogut não romantiza. Mostra a alegria permeada por um medo palpável: medo da violência política, do negacionismo armado, da sensação de que “a guerra não terminou”. Essa ambiguidade é seu maior trunfo. A posse não é um epílogo, mas um interlúdio tenso. A câmera, que antes dançava nos comícios, mergulha sem piedade no caos do 8 de janeiro, filmando em tempo real o ataque às sedes dos Três Poderes. As mesmas pessoas que sorriram em outubro aparecem agora atônitas diante dos vídeos de vandalismo, confrontando um pesadelo que se adiou, mas não se dissipou.
Kogut realiza uma guinada fundamental ao deslocar o foco dos protagonistas midiáticos para os artífices obscuros da democracia. São os mesários treinando no interior do Pará, os técnicos transportando urnas por rios amazônicos, os voluntários checando listas em escolas esquecidas que carregam o fio narrativo. Num plano memorável, uma trabalhadora do TSE explica com paciência exausta o sistema eletrônico a idosos ribeirinhos – uma cena banal e heroica que desmonta fake news sem pronunciá-las, materializando o patrimônio institucional que o país insiste em ignorar. Quando a invasão do Congresso irrompe na tela, cortando a rotina desses personagens, o efeito é de violação brutal: o trabalho silencioso é esmagado pelo espetáculo do ódio.
A diretora evita maniqueísmos, mas não cai na armadilha da falsa neutralidade. Seu risco maior foi entrevistar eleitores ferrenhos de Bolsonaro, expondo suas convicções em realidades paralelas sem julgamento explícito. Numa cena reveladora, uma mulher interrompe a entrevista: “Não falo com esquerdista”. O clima não é de confronto, mas de exaustão mútua. Kogut confessa o incômodo ético: seria um abuso do seu poder ficar brigando. Essa escolha gera uma tensão produtiva. Ao humanizar os “inimigos” – um pai de família em Curitiba, um pequeno comerciante – o filme escancara o abismo cultural intransponível pela política tradicional. O golpe mortal vem depois: quando imagens do 8 de janeiro surgem, esses mesmos rostos reaparecem na multidão golpista. A mensagem é cristalina: a linha entre o cidadão “de bem” e o invasor é tênue, alimentada pela mesma desinformação que o filme rastreia em grupos de WhatsApp e discursos inflamados.
Lançado sob a sombra de 2026, o documentário ganha contornos proféticos. Kogut captura a ingenuidade perigosa do pós-vitória: “As pessoas viraram a página muito rápido, achando que tudo tinha acabado”. O alívio de 2022 foi apenas um suspiro. As imagens finais – ativistas lulistas na Paulista versus bolsonaristas que continuam sem aceitar a derrota – ecoam como um loop perverso. A força do filme está em lembrar que o golpe não nasceu em 8 de janeiro: gestou-se nos meses de narrativas de fraude, no autoritarismo glamourizado, no ataque constante às instituições. Ao mostrar o TSE sob cerco digital, Kogut revela a pré-história do caos.
Tecnicamente híbrido e inventivo, o documentário mescla imagens de zoom, câmeras na mão em manifestações e arquivos de celulares de militantes. A montagem ritmada como thriller não sufoca o humanismo. Se há falha, é uma certa pressa em compactar eventos complexos, como o papel das Forças Armadas. Mas é um preço ínfimo diante da ambição de abarcar um país em colapso.
“No Céu da Pátria Nesse Instante” é, no fundo, um tratado sobre a fragilidade dos consensos. Ao reacender a chama do alívio de 2022 para apagá-la com o fogo de 2023, Sandra Kogut crava uma verdade incômoda: democracia não é simplesmente comparecer diante das urnas a cada 4 anos. Defende-se no cotidiano, com memória aguçada e desconfiança vigilante. Em tempos de revisionismo, este filme é antídoto e grito. Um espelho quebrado onde o Brasil precisa se enxergar antes que seja tarde.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade