Os 80 Anos do Sol Inacabado de Gal Costa
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Hoje, o ar respira diferente. O samba-canção ganha uma nuance mais doce, o rock brasileiro um pouquinho de ousadia tropical e a bossa nova um suspiro mais profundo. É que o universo sonoro celebra os 80 anos de nascimento de uma de suas estrelas mais radicais e ternas: Gal Costa. Nascida Maria da Graça Costa Penna Burgos em 26 de setembro de 1945, em Salvador, Gal não veio ao mundo apenas para cantar. Veio para rasgá-lo ao meio e, com a agulha da voz, costurar uma nova pele musical para o Brasil.
Gal foi a mais visceral encarnação da Tropicália em forma de voz. Enquanto os companheiros compunham, teorizavam e tocavam, ela era o instrumento primordial, a matéria-prima da revolução. Em seu primeiro álbum, Domingo, ao lado de Caetano Veloso, apresentou-se como a menina dos olhos de ébano, com uma voz de suavidade enganosa. Mas era apenas o prelúdio. O furacão verdadeiro viria com o disco Gal Costa (1969), um manifesto de independência estética e corporal. Ao gravar “Não Identificado”, ela não cantou: eletrificou-se, tornou-se um ser pós-humano, uma divindade elétrica desafiando tudo.
Sua voz era um território de contrastes. Podia ser um fio de seda a percorrer a espinha em “Baby”, um grito cru em “Meu Nome é Gal”, um lamento ancestral em “Volta” ou uma conversa íntima e aveludada em “Desalento”. Gal dominava o microfone como uma grande atriz do teatro da emoção. Ela não interpretava as canções; ela as habitava.
Gal era o paradoxo em carne e osso. A diva que pisava no palco descalça. A estrela de rock que embalava o país com uma canção de ninar como “Folhetim”. A baiana que se tornou o grande ícone da música popular brasileira sem nunca perder o sotaque e a ginga de sua terra. Ela atravessou décadas não como uma relíquia do passado, mas como uma artista em permanente estado de busca. Dos arroubos tropicais à sofisticação da MPB dos anos 70, das investidas pop aos reencontros com o samba e a bossa nova, Gal manteve-se fiel a um único princípio: a coragem.
Hoje, completaria 80 anos. E o que celebramos não é apenas uma discografia impecável, mas uma atitude existencial. Gal Costa nos ensinou que a voz é um instrumento de liberdade. Que o corpo no palco é um campo de batalha e de prazer. Que a música pode, sim, mudar o mundo, começando pelo mundo íntimo de quem ouve.
Seu sol se pôs fisicamente em 9 de novembro de 2022, mas a luz que emanou – intensa, quente, por vezes cegante – continua a iluminar e a aquecer. É um sol inacabado, como toda grande obra de arte. Sua voz ecoa, um raio de eternidade preso nos sulcos dos discos e na memória afetiva de um país. Gal é para sempre.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
Confira a playlist especial GAL – AS 20 ESSENCIAIS