Malês, de Antônio Pitanga, é mais que cinema: é memória, política e reparação
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Em cartaz desde 2 de outubro, Malês, novo filme de Antônio Pitanga, chega aos cinemas como um gesto de resistência e resgate histórico. A obra revisita a Revolta dos Malês, levante ocorrido em 1835 na Bahia, liderado por escravizados e libertos muçulmanos que ousaram desafiar a ordem escravocrata. Mais do que contar uma história esquecida, Pitanga propõe uma reflexão urgente sobre os silêncios da historiografia oficial brasileira.
O diretor, ícone da cultura negra no país, foge do formato tradicional. Malês não é um documentário explicativo nem um drama histórico convencional. Com uma linguagem estética ousada e não linear, o filme entrelaça passado e presente, mostrando como os ecos da revolta ainda ressoam nas ruas, nos terreiros e no sotaque de Salvador — mesmo que muitas vezes ignorados.
A narrativa revela como o apagamento de vozes negras e muçulmanas foi usado como ferramenta de controle social. A revolta dos Malês não foi um simples motim de escravizados insatisfeitos, como sugerem visões reducionistas. Foi um movimento político articulado, guiado por uma cosmovisão própria, com códigos religiosos e culturais que a elite da época não compreendia — e por isso tentou eliminar com violência e esquecimento.
Pitanga também confronta o mito da democracia racial. Ao destacar que os revoltosos eram muçulmanos, o filme expõe o racismo religioso e cultural que marcou a repressão: além da violência física, houve destruição de escritos em árabe e proibição de práticas religiosas. Malês mostra que controlar a narrativa histórica sempre foi parte do projeto de dominação. O que não é contado, o que não vira nome de rua ou estátua, corre o risco de desaparecer da memória coletiva.
A escolha por uma linguagem poética e fragmentada pode exigir mais do espectador, especialmente daqueles menos familiarizados com o episódio histórico. Mas essa parece ser uma decisão consciente do diretor: não se trata de “explicar” o negro para o centro hegemônico, e sim de convidar o público a mergulhar, buscar e reconstruir essa memória por si só.
No fim, Malês é mais que um filme. É uma cerimônia de reparação simbólica. Ao trazer à tona a imagem dos homens de túnica branca, com suas adagas e Alcorãos, Pitanga os apresenta não como insurgentes, mas como idealizadores de um Brasil que poderia ter sido — e que foi brutalmente interrompido. A obra não oferece respostas fáceis, mas lança uma pergunta essencial: quanto da desigualdade que vivemos hoje é fruto dos vazios de memória que insistimos em não preencher?
Malês é um chamado para escutar os tambores que a história oficial tentou silenciar.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade