A Sombra de uma Ausência: “Primavera Nos Dentes” Narra o Mito Secos & Molhados Sem João Ricardo

Uma banda que ousava encarar de frente a ditadura militar sanguinária, um furacão de androginia, poesia afiada e teatralidade visceral; o Secos & Molhados não foi apenas um fenômeno de vendas nos anos 1970, foi um território de liberdade conquistado à força, com maquiagem, figurinos que chocavam a “tradicional família brasileira” e letras que cortavam como navalha. Cinquenta anos depois, a série documental Primavera Nos Dentes, do diretor Miguel de Almeida, que estreia nesta sexta-feira (31/10) no Canal Brasil às 21h30, se propõe a dissecar esse mito. Os dois primeiros episódios, exibidos para a imprensa, confirmam a ambição e o rigor da empreitada, mas também escancaram uma ferida que nunca fechou: a ausência silenciosa e intransigente de João Ricardo.
A série é guiada pelo livro homônimo escrito pelo próprio diretor Miguel de Almeida e construída sobre uma base sólida de depoimentos que ajudam a reconstruir esta história Ney Matogrosso, Gerson Conrad, Emilio Carrera, Willy Verdaguer e Paulo Mendonça narram com riqueza de detalhes o ambiente teatral que gestou a banda, a efervescência criativa e o impacto de explosão. As imagens de arquivo são um personagem à parte, transportando o espectador para o momento terrível do Brasil sob a repressão, contrastando brutalmente com o sopro de ar puro – ou melhor, de ar revolucionário – que o trio representava.
Ney, em seu depoimento, é categórico ao explicar que a icônica maquiagem foi baseada na tradição japonesa do teatro kabuki, que conheceu no bairro da Liberdade, em São Paulo, e que ela serviu para a criação de uma persona, uma máscara que, paradoxalmente, permitia a revelação mais crua de seus corpos e vozes. Ela permitia a liberdade de continuar anônimo mesmo enquanto a música e a imagem da banda explodia na mídia e nas paradas de sucesso.

A importância do grupo é dimensionada por vozes de outras gerações, como Charles Gavin, Frejat, Ana Cañas e Duda Brack que atestam a influência atemporal daquele projeto que desmontou convenções.
No entanto, a sombra de João Ricardo, o principal compositor da banda, paira sobre a obra como um fantasma. Sua recusa em participar e, mais crucialmente, em autorizar o uso das músicas originais do Secos & Molhados, impôs um desafio colossal à produção. A solução encontrada foi tão criativa quanto a própria banda: em vez de tentar substituir o irreproduzível, a produção encomendou novas canções.
Assim, Paulo Mendonça (que integrou a banda do Secos & Molhados) e os músicos Emílio Carrera (piano) e Willy Verdaguer (baixo) compuseram sete músicas inéditas para a trilha. O ápice desse esforço é “Ouvindo o Silêncio”, uma canção inédita de Gerson Conrad e Paulo Mendonça que reuniu, em um estúdio, Ney, Gerson, Paulo, Emílio e Willy – uma reunião histórica, meio século depois. As novas composições atuam como um comentário, uma trilha paralela que recria a sonoridade sem violar a proibição, criando um diálogo com o passado.
A ironia é pungente. Primavera Nos Dentes consegue mapear com perfeição o sopro de liberdade que o grupo representou, mas esbarra nas mesmas mágoas que provocaram seu fim precoce. A série é, portanto, um documento tão importante quanto incompleto. Ela prova que as mesmas forças de genialidade e conflito que forjaram o mito Secos & Molhados ainda são capazes de moldar sua história, meio século depois. A primavera, afinal, pode ter florescido nos dentes, mas algumas cicatrizes ainda doem.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Série documental Primavera nos Dentes – A História do Secos & Molhados 
Onde: Canal Brasil
Quando: Sexta-feira, 31/10, às 21h30 
Assista ao trailer da série “Primavera nos Dentes – A História do Secos & Molhados”:

 
													 
													 
													