Sonhos: Quando a Caridade é uma Forma de Poder

Sonhos – foto: Divulgação

Nesta quinta-feira (30/10), chega aos cinemas brasileiros o drama Sonhos, uma nova incursão do cineasta mexicano Michel Franco pelas feridas da vida real e desta vez, olhando diretamente para o abismo da desigualdade social, um terror que continua destruindo o que ainda resta de compaixão nas relações humanas.

O filme funciona como um diagnóstico implacável das dinâmicas de poder na interseção entre a elite filantrópica e a classe artística. A narrativa acompanha Jennifer (Jessica Chastain), membro de uma família bilionária, cuja vida é um circuito de jantares de gala e inaugurações de instituições custeadas por sua fortuna. Essa bolha de privilégio é rompida quando ela inicia um relacionamento com Fernando (Isaac Hernández), um bailarino talentoso de uma escola de dança na Cidade do México financiada por sua própria família.

O que se inicia como um gesto de apoio rapidamente se revela a peça central de uma crítica contundente. A “generosidade” de Jennifer não é altruísta, mas o gesto fundador de uma dinâmica transacional que transforma afeto em projeto de intervenção social. O filme expõe a filantropia não como um ato de solidariedade, mas como um mecanismo sutil de manutenção de hierarquias. O capital econômico é convertido em capital simbólico, onde o artista apoiado se torna, paradoxalmente, um objeto que legitima o poder de quem o patrocina.

Franco explora a tensão entre desejo e privilégio com uma precisão cirúrgica. A atração entre Jennifer e Fernando é intensa, mas inextricavelmente marcada pela desigualdade, tornando a relação uma experiência de ambivalência sexual e social. A incapacidade de Jennifer de falar espanhol – dependendo de um aplicativo de tradução para se comunicar com seu parceiro – é um símbolo potente da distância cultural que o dinheiro não consegue superar. É a arrogância de um poder que busca proximidade sem abrir mão de suas barreiras, revelando o abismo entre as intenções públicas progressistas e as atitudes privadas segregacionistas.

A câmera de Franco não embeleza. Ela captura a elegância estéril dos ambientes de elite com a mesma frieza com que registra as crueldades sutis que os sustentam. A representação dos artistas mexicanos no filme é crucialmente ambígua: são admirados pelo seu talento, mas confinados a um papel essencialmente decorativo dentro do circuito que promete sua ascensão. Esta ambivalência desnuda um racismo condescendente e uma prática de slumming emocional, onde a aproximação com as camadas populares serve para excitar a elite, sem jamais ameaçar as estruturas que produzem a exclusão.

No plano interpretativo, Jessica Chastain constrói uma Jennifer contida e cortante, personificando um projeto de vida bem-sucedido que, no entanto, é desprovido de verdade afetiva. Sua frieza é um instrumento dramático que ilumina a mecânica do poder. Isaac Hernández, como Fernando, oferece um contraponto de vulnerabilidade física e emocional, tornando visível a assimetria na relação. Sua performance demonstra como a mobilidade oferecida pela caridade pode ser, ao mesmo tempo, uma via de emancipação e um mecanismo de subjugação.

Sonhos assume um tom declaratório e recusa qualquer rota de salvação ou narrativa redentora para seus personagens. Franco privilegia o diagnóstico sociopolítico em detrimento da compaixão fácil. O filme é um espelho incômodo jogado sobre as contradições morais do patrocínio cultural contemporâneo. O resultado é uma obra esteticamente rigorosa e politicamente contundente, que força uma pergunta crucial: até que ponto o envolvimento íntimo das classes dominantes pode ser dissociado de formas veladas de dominação?

Em seu conjunto, Sonhos impõe uma leitura crítica necessária. Poder, privilégio e desejo se entrelaçam de tal forma que transformam até mesmo o amor em instrumento de acumulação de capital simbólico. O filme não busca comover; seu objetivo declarado é incomodar. E nessa missão, Michel Franco é incisivo e soberano.

Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Assista ao trailer de “Sonhos”:

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