O Sobrevivente: A Distopia do Agora

“O Sobrevivente”, dirigido por Edgar Wright e estrelado por Glen Powell, estreou nos cinemas em 20/11 e é a nova adaptação do romance de Stephen King que já ganhou versão em 1987; o filme reconfigura o conto original como um thriller distópico centrado num reality show mortal.
Edgar Wright retoma aqui uma premissa conhecida — o homem comum empurrado a extremos por um sistema que explora a miséria alheia — e a transforma num espetáculo de ritmo acelerado e acabamento técnico apurado. Glen Powell assume o papel-título com carisma calculado, oferecendo uma presença que equilibra vulnerabilidade e bravura cínica; a trama o coloca num jogo de sobrevivência televisivo, onde a promessa de recompensa financeira se choca com a violência organizada que persegue os competidores. A adaptação dialoga diretamente com a tradição kingiana de horror social, mas Wright imprime sua assinatura visual e um timing que alterna tensão e ironia.
O que distingue esta versão é a ênfase explícita na crítica à mídia e às grandes corporações exercendo poder político. O reality show não é apenas entretenimento sádico: é mecanismo de controle, espetáculo que naturaliza a desigualdade e transforma sofrimento em produto consumível. Wright e o roteiro expõem como plataformas de comunicação e conglomerados econômicos podem funcionar como aparelhos de poder, moldando narrativas, selecionando vítimas e legitimando a violência sob o verniz da “diversão” e da “meritocracia”. Essa leitura torna o filme menos uma fábula de ação e mais um comentário sobre a mercantilização da vida e a erosão das instituições democráticas.
No momento em que o mundo assiste ao avanço de movimentos fascistas e à normalização de práticas políticas autoritárias, o filme ganha uma atualidade inquietante. A opressão aqui não vem apenas do Estado, mas de uma aliança entre capital, mídia e milícias privadas — uma configuração que ecoa debates contemporâneos sobre desinformação, privatização da segurança e captura institucional. Wright evita didatismos óbvios, preferindo mostrar os mecanismos: a edição que fabrica heróis e vilões, os algoritmos que amplificam o ódio, o espetáculo que anestesia a empatia. Esses elementos funcionam como espelho para um público que consome imagens e, muitas vezes, ignora as estruturas que as produzem.
Tecnicamente, o filme é eficiente: montagem ágil, direção de arte que sugere um futuro plausível e trilha que acentua a sensação de urgência. Mas é no campo político que “O Sobrevivente” mais incide — e onde também suscita perguntas necessárias: até que ponto o entretenimento denuncia o sistema sem reproduzir suas dinâmicas? Em que medida o espectador, ao se compadecer do protagonista, corre o risco de transformar empatia em espetáculo? Wright entrega um filme que entretém e incomoda, lembrando que, quando o fascismo se alimenta de indiferença e espetáculo, a crítica estética pode ser também um ato de resistência.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
