Jay Kelly e o vazio da gaiola de ouro

Logo nas primeiras imagens, Noah Baumbach nos convida a atravessar a porta dos bastidores: um plano‑sequência generoso que nos empurra para dentro de um estúdio onde mais um grande espetáculo é construído ao redor de Jay Kelly (George Clooney). A cena funciona como um cartão de visitas — não apenas do filme dentro do filme, mas do próprio tema que Baumbach quer dissecar: a fabricação do mito e o vazio que ele pode esconder.
Mestre das crises íntimas das elites criativas, o diretor troca o apartamento literário nova-iorquino por Los Angeles — sol forte e névoa — e volta seu bisturi para o epicentro do chamado star system. O que poderia ser mais um retrato previsível do astro em declínio transforma‑se, nas mãos do cineasta, em uma sátira melancólica: o glamour vira máscara e, por baixo dela, há arrependimento, autenticidade em falta e uma busca por sentido que escapa como areia.
O roteiro evita o melodrama fácil. Em vez de acompanhar a queda espetacular de um herói, Baumbach prefere mostrar o aprisionamento no topo: Jay Kelly não despenca, ele se encontra enclausurado numa gaiola dourada, cercado por funcionários cuja lealdade parece medir-se apenas pelo sucesso do patrão. A desconexão é silenciosa, quase burocrática — e é aí que mora o desconforto mais eficaz do filme.
O humor, ácido e seco, nasce do absurdo cotidiano de Hollywood: negociações, egos, protocolos que soam ridículos quando vistos de perto. Esse riso cortante funciona como contraponto à angústia do protagonista, sem nunca transformar a dor em caricatura. É um humor que observa, aponta e deixa o espectador desconfortavelmente cúmplice.
O filme ganha vida sobretudo pelo elenco. George Clooney empresta ao personagem toda a sua iconografia de astro seguro para, com precisão cirúrgica, desconstruí‑la. Clooney alterna a comicidade do ego em crise com uma vulnerabilidade quase patética — a sensação de impostor que persiste mesmo quando tudo ao redor grita sucesso. É uma atuação que se alimenta do que o ator já representa e, ao mesmo tempo, o subverte.
Ao lado dele, Adam Sandler surpreende: contido, econômico, é o pragmatismo em carne e osso — o amigo que também é negociador. Sandler encontra um tom raro, onde o timing cômico convive com uma ternura discreta. Laura Dern, em poucas cenas, ilumina o filme; sua agente de relações públicas é espelho e lembrança, alguém que traz mágoa e lucidez, e que aponta para um mundo além da bolha hollywoodiana.
A fotografia, mais saturada e limpa do que o Baumbach a que estamos acostumados, replica a estética dos filmes estrelados pelo personagem, ampliando ainda mais a sensação de vazio. A trilha, muitas vezes irônica, sublinha momentos de absurdo e de introspecção com economia — nunca empurra, apenas acentua.
Jay Kelly não reinventa o subgênero do astro em crise, mas o trata com inteligência e sensibilidade psicológica. O filme é menos um tratado sobre a indústria e mais uma meditação sobre o instante em que o “e agora?” se instala na vida de alguém que, aparentemente, tem tudo. Conduzido por Clooney e por um elenco que não se limita a ornamentar, o longa é um mergulho agridoce nos bastidores de uma existência performática, uma obra para quem aprecia diálogos afiados, personagens complexos e uma sátira humana que prefere a precisão à caricatura.
Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade
