O Maior Espetáculo da Terra, em 70mm: A Cápsula do Tempo que Preservou a Alma e a Fúria dos Stones

Stones at the MAX – Foto: Reprodução

Na última quarta-feira, uma tela gigante não exibiu apenas um filme, mas ressuscitou um rito. A exibição remasterizada de Stones at The Max foi muito além do mergulho nostálgico: foi a reafirmação de que, três décadas depois, aquele registro ousado permanece como uma das mais poderosas experiências já concebidas sobre o rock em seu estado bruto.
Lançado originalmente em 1991 para os então raríssimos cinemas IMAX, o documento da turnê Urban Jungle (o braço europeu da estrondosa volta por cima do Steel Wheels) ganha uma nova pele digital. Uma pele que não trai a alma: a restauração preserva a textura crua das películas originais enquanto injeta no espectador contemporâneo a mesma pancada sonora e visual que deveria causar vertigem nos anos 90.

Para entender a magnitude, é preciso voltar ao contexto. A ambição era, em si, um ato de rebeldia. Em uma época em que o formato IMAX era território exclusivo de documentários científicos e paisagens monumentais para museus, a ideia de canalizar a energia caótica dos Rolling Stones através de oito câmeras de 65mm montadas em trilhos soava como loucura. O resultado, porém, foi alquimia pura. Assinado por uma equipe de oito diretores – com a inconfundível influência do estilo de Julien Temple –, o filme opta por deixar de lado a edição frenética dos videoclipes. Em seu lugar, oferece tomadas prolongadas, quase contemplativas, que não mostram o show: nos colocam dentro dele. A sensação é a de ocupar um lugar impossível, grudado no palco, testemunhando ao vivo o gigantismo íntimo da Maior Banda de Rock do Mundo.

E é nessa intimidade amplificada que a magia acontece. A câmera lenta não é um efeito, é um convite à leitura. Captura a linguagem secreta das guitarras: o diálogo de olhares e sorrisos cúmplices entre Keith Richards e Ronnie Wood, a conversa de riffs que tecem a tapeçaria de “Rock and a Hard Place”. Persegue Mick Jagger em sua corrida transatlântica pelo palco, um furacão que parece desafiar sua condição humana, cantando normalmente, sem perder o fôlego depois do longo trajeto. E, com um respeito quase solene, focaliza a base que sustenta o furacão: o gesto contidos e sorrisos de Charlie Watts e a presença sóbria e definitiva de Bill Wyman, cujo baixo preciso e discreto adiciona a suculência essencial a “Paint It, Black” e a pulsação tribal de “Sympathy for the Devil”.

No plano das performances, o filme captura muito mais que um concerto. Captura um momento de reinvenção e reafirmação. Os Stones ressurgiam das cinzas de uma guerra interna que quase os dissolveu, e a energia é de triunfo, de reconciliação. Jagger, no auge de seus poderes como showman, domina a cena com um carisma que impele o olhar, enquanto a banda, renascida, soa incrivelmente coesa e feroz. O repertório é um manifesto desse recomeço: equilibra a novas músicas de Steel Wheels com clássicos imortais e raridades ressuscitadas, como uma “2000 Light Years From Home” que adiciona uma beleza psicodélica e fantasmagórica ao que então era apenas a realidade do palco.

A verdadeira revolução, porém, está na fusão entre tecnologia e emoção. O IMAX não apenas amplia; ele dá peso, textura e volume. A mixagem sonora da versão remasterizada é um acontecimento físico. Os graves de Wyman e Watts não são ouvidos, são sentidos no plexo solar. As guitarras ocupam espaço aéreo, e a voz de Jagger corta o ar com uma clareza e uma presença quase tátil. É a perfeição técnica, sim, mas a serviço da imersão total.

Essa mesma perfeição, contudo, levanta um paradoxo fascinante. A limpeza cristalina da imagem e a precisão cirúrgica do som podem, às vezes, amenizar a sujeira, o risco e o suor que são o DNA do rock ao vivo dos Stones. Ganhamos em monumentalidade, perdemos alguma espontaneidade. No entanto, a estética do filme transforma essa aparente limitação em virtude. Os enquadramentos cuidadosos e os momentos de câmera lenta oferecem uma nova chave de leitura: não apenas o que foi tocado, mas como aquilo se constituía como espetáculo.

Emocionalmente, Stones at The Max funciona hoje como uma cápsula do tempo duplamente preciosa. É o testemunho de uma formação clássica em seu último suspiro de glória integral, e um marco tecnológico que ousou pensar grande para a maior banda do mundo. Rever o filme em sua grandeza restaurada é visitar um templo onde cada acorde é celebração e, ao mesmo tempo, despedida.

Para quem viveu a era, é a nostalgia em sua forma mais épica e legítima. Para as novas gerações, é uma aula incontestável – e avassaladora – sobre a escala que o rock pode atingir quando talento, história e ambição se encontram em ponto alto. O filme consagra o gigantismo sem nunca apagar a pulsação primal que fez desses senhores lenda. A exibição no Brasil foi, portanto, mais que uma sessão de cinema. Foi uma rara chance de sentir, nas proporções devidas, por que os Rolling Stones, mesmo transformados em monumento, continuam sendo, incontestavelmente, O Maior Espetáculo da Terra.

Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Assista ao trailer de “Stones at the MAX”:

Comente: