A Reserva: Silêncio nas Sombras do Privilégio

A Reserva – foto: Reprodução

Em A Reserva, minissérie dinamarquesa disponível na Netflix, o desaparecimento de uma jovem au pair filipina serve como catalisador para dissecar as entranhas de uma sociedade que normaliza a desigualdade em nome da ordem vigente. Mais do que um thriller policial, a narrativa tecida pela roteirista Ingeborg Topsøe e dirigida por Per Fly transforma-se em um retrato incisivo de como o poder se entrelaça ao silêncio, perpetuando violências estruturais que atravessam classes, gêneros e fronteiras.

A trama, ambientada em um enclave luxuoso de Copenhague, expõe a dualidade perversa do sistema que explora trabalhadoras imigrantes enquanto as apaga da própria história. Ruby e Angel, ambas filipinas em empregos precarizados, personificam a invisibilidade de pessoas tratadas como descartáveis: suas existências são reduzidas a funções domésticas, enquanto abusos são encobertos sob o manto da normalidade. A série questiona, sem concessões, a hipocrisia de uma Europa que se vê progressista, mas depende do trabalho subjugado de mulheres de países do terceiro mundo para sustentar seu conforto.

O verdadeiro suspense, aqui, não está apenas na investigação do desaparecimento, mas na gradual revelação de como as elites cultivam redes de cumplicidade. Famílias influentes, policiais omissos e até instituições aparentemente neutras formam um ecossistema que privilegia reputações em detrimento de vidas. A negligência das autoridades em tratar o caso como “prioridade baixa” não é um detalhe, mas um sintoma de como a justiça se curva a hierarquias sociais. A detetive Aicha (Sara Fanta Traore), única voz dissonante nesse cenário, enfrenta não apenas a apatia do sistema, mas a solidão de quem ousa desafiar a ordem estabelecida, uma metáfora potente sobre a resistência em meio à indiferença.

A estética do Nordic Noir, marca registrada da produção, ganha camadas simbólicas: as paisagens gélidas da Costa Dinamarquesa e a arquitetura impecável das mansões contrastam com a degradação ética que se esconde atrás de portas fechadas. A fotografia, austera e contemplativa, não apenas ambienta, mas denuncia. Cada plano estático de salas amplas e vazias parece ecoar o vazio moral de seus ocupantes, enquanto a luz fria que banha os ambientes reflete a desconexão afetiva de uma elite acostumada a tratar pessoas como objetos.

Sem cair em maniqueísmos, A Reserva recusa-se a oferecer consolo ou redenção. Seu impacto reside justamente na crueza com que expõe mecanismos de opressão: o privilégio não é um acidente, mas um projeto mantido por escolhas diárias de silenciamento. A série reverbera discussões urgentes, como a exploração de imigrantes no Norte Global e a impunidade corporativa — temas que ecoam, por exemplo, em conflitos ambientais ligados a grandes plataformas de streaming. Ao fundir suspense e crítica social, a produção desafia o espectador a sair da posição cômoda de observador: afinal, em um mundo onde a omissão é cumplicidade, qual é o nosso papel na perpetuação dessas estruturas?

A Reserva não entrega respostas, mas acende um incômodo necessário — talvez o primeiro passo para romper o silêncio.

Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Assista ao trailer de A Reserva:

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