O Preço do Silêncio em “Depois da Caçada”

Depois da Caçada – foto: Reprodução

Num momento em que a poeira do movimento Me Too ainda não assentou completamente, pairando sobre Hollywood e as instituições de poder como um espectro que exige — e adia — uma reflexão verdadeira, Luca Guadagnino não oferece respostas. Ele prefere o terreno mais perigoso: o das perguntas. Depois da Caçada não é um manifesto, tampouco uma tese moral disfarçada de cinema. É um mergulho sensorial e intelectual nos pântanos da verdade, do privilégio e da memória — conduzido com a coragem de quem sabe que sair limpo não é opção.

A história se desenrola entre os corredores frios e solenes da Universidade de Yale, onde o verniz da erudição mal disfarça o peso das hierarquias. Uma acusação — a de tentativa de estupro feita por uma aluna brilhante, Maggie (Ayo Edebiri), contra um professor carismático, Hank (Andrew Garfield) — deflagra uma tempestade silenciosa. No centro dela, a professora Alma (Julia Roberts), uma intelectual veterana que observa o conflito com o distanciamento de quem já se queimou demais. A partir desse triângulo, Guadagnino constrói uma narrativa tensa, onde cada gesto, cada pausa, parece conter uma explosão contida.

O diretor de “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017) troca aqui o calor do desejo pela frieza do controle. A fotografia é sóbria, quase claustrofóbica, aprisionando seus personagens em salas que parecem julgá-los mais do que acolhê-los. O glamour cede lugar a uma dissecação minuciosa da percepção — de como o poder, o prestígio e a classe social moldam o modo como enxergamos o outro. Não há vilões absolutos, tampouco vítimas imaculadas. Guadagnino prefere explorar as rachaduras — as contradições que nascem quando o intelecto tenta racionalizar o trauma.

Mas o que realmente perturba em Depois da Caçada é o modo como o filme desmonta a ideia de verdade. Ele nos coloca diante do desconforto de perceber que cada relato, por mais sincero, é também uma construção. Onde termina a justiça e começa a perseguição? O que acontece quando o poder que deveria proteger se volta para preservar a si mesmo? Guadagnino não suaviza essas perguntas — ele as deixa ecoar, ácidas, até o fim.

A força do filme repousa também nas interpretações. Ayo Edebiri entrega uma performance contida, mas elétrica, equilibrando fragilidade e fúria. Andrew Garfield encarna o charme tóxico com uma precisão quase cruel. E Julia Roberts, glacial e contraditória, faz talvez o papel mais denso de sua carreira recente — uma mulher que carrega nas entrelinhas o peso da cumplicidade e do cansaço.

Depois da Caçada é um filme que não busca consenso — e por isso mesmo é necessário. Um espelho incômodo, que nos devolve não a imagem do que queremos ver, mas do que insistimos em ignorar. Guadagnino transforma a dúvida em matéria-prima, o silêncio em narrativa, e o desconforto em arte. No fim, o que fica é a sensação de ter atravessado um território minado — e de que, talvez, a verdade não esteja em escolher um lado, mas em admitir o quanto todos os lados sangram.

Adriana Maraviglia
@revistaeletricidade

Assista ao trailer de “Depois da Caçada”:

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